quarta-feira, 25 de abril de 2012

TODOS FOMOS ESPANCADOS! CHOQUE DE AMOR NOS ARCOS DA LAPA!


Postado originalmente no blog Comer de Matula

Grupo de amigos é violentamente espancado na Rua Joaquim Silva, nos Arcos da Lapa, na madrugada de sábado. Guarda Municipal ri. Cabine da PM vazia. Delegacia, descaso, frieza, demora.

Diante da covardia ilimitada, inundaremos a Lapa de amor. Uma infantaria amorosa na Joaquim Silva!

Cada vez mais e mais. A Lapa, o Centro, a Zona Sul, Subúrbio, Baixada, o Estado, o País!

não me interessa a segurança da minha casa, o vidro fechado, o carro blindado, condomínio isolado, a paz do gueto. eu quero reclamar esse espaço que é a rua, porque, se não velho, nada disso faz sentido. eu não acredito, ou não quero acreditar, que é assim mesmo, que tome cuidado e que fica por isso. no último sábado, na lapa, eu não apanhei sozinho!  apanhamos todos!

Acreditar
Há existência dourada do sol
mesmo que em plena boca
nos bata o açoite contínuo da noite.
Arrebentar
a corrente que envolve o amanhã,
despertar as espadas,
varrer as esfinges das encruzilhadas.

(O Cavaleiro e os moinhos, João Bosco)



Segue relato de uma das vítimas:

"para trás ficou
a marca da cruz
na fumaça negra
vinda na brisa da manhã
ah, como é difícil tornar-se herói
só quem tentou sabe como dói
vencer satã só com orações"

(agnus sei, aldir blanc/joão bosco)

amigos, relato. nem todo mundo soube do que aconteceu no último sábado na lapa. é um pouco longo, mas peço a atenção de vocês, principalmente daqueles que frequentam o bairro à noite.

fui espancado, com mais três amigos, conhecidos de muita gente, por um grupo de caras motivados por ódio num crime de homofobia. um deles é o Kleper Gomes Reis. os outros, por enquanto, vou preservar.

eram quase cinco da manhã. nós havíamos acabado de sair do sinuca tico e taco, na rua da lapa, acompanhando uma amiga que queria comer alguma coisa no ximenes (esquina da joaquim silva com teotônio, em frente à escadaria do selaron). depois que ela comeu e foi embora a gente continuou ali, sentado no meio-fio, de boa, conversando.

foi nessa hora que dois malucos se aproximaram.

éramos em cinco, quatro homens e a Nicole que tava com a gente desde o início (o Kleper só chegou depois). eles não nos conheciam, nós não os conhecemos, é importante dizer. foi apenas por entenderem que éramos gays, pela forma que estávamos sentados, de mãos dadas, ou encostados uns sobre os outros, que nos agrediram.

primeiro, dizendo coisas, como: "ih, vocês são viadinhos, sentados aí todos juntos? não curtem mulher não, né? deviam tá pegando mulher. eu já peguei quatro buceta hoje! e vocês ficam aí no meio da rua, com todo mundo vendo!" e indo além: "quem vai chupar meu pau?", perguntou um deles, jogando uma moeda de dez centavos em nossa direção.

a gente reagiu atirando a moeda de volta e deixando bem claro que não tava afim de papo com eles, e que fossem embora, porque, afinal, já haviam cumprido seu dever/obrigação social de sair na sexta pra pegar mulher.

estimulados pelo ódio de ver amigos trocando afetos em público, inadmissível moral e ideologicamente, partiram da provocação verbal pra agressão física em um empurrão e um chute. ficamos de pé e teve um princípio de confusão que, de nossa parte, não foi além de dizer que não iríamos tolerar agressão e pedir que fossem embora. saíram resmungando alguma coisa e desceram em direção aos arcos, e nós, nos abraçamos em grupo, tentando entender o que havia acabado de acontecer.

minhas pernas tremiam. lembro que pelo meu corpo subia o sangue quente que fazia minhas mãos queimar como fogo. gritei como um louco! ninguém esperava por isso, não naquele lugar; só que não era o fim... coisa de minutos depois, eles voltaram em bando. eram 10, 12, 15 caras com eles, ninguém sabe direito, foi muito rápido.

nós estávamos ainda de costas para a rua quando um daqueles caras que chegou primeiro foi logo dando um soco na cabeça de um amigo. no meio da rua, vinham mais três ou quatro, e um grupo maior vindo mais atrás pela calçada da joaquim silva. gritei CORRE!

descendo pelo beco da teotônio, Kleper conseguiu escapar, enquanto corria de costas se defendendo, à procura de qualquer ajuda; de amigos, que a essa hora deveriam estar no bar da cachaça; ou da polícia e da guarda municipal, mas sem sucesso. tanto porque não havia ninguém conhecido, quanto porque, no posto da GM, perto do circo voador, riram dele dizendo que mandariam um carro pra lá, que nunca chegou.

outro amigo nosso caiu no chão do primeiro ataque, sendo chutado por quatro ou cinco caras. pulei no meio dessa roda, girando enquanto também batia e tentava defesa, mas fui puxado e rasgaram minha camisa. tomei vários chutes, socos nas costas, na face e na cabeça. esse amigo foi arrastado do bueiro até o outro lado do beco sem deixarem de espancá-lo por um minuto, eles chutavam na cabeça!

mais acima, perto do bar, uma mulher achou que ajudava colocando um pedaço de pau na mão do terceiro amigo. quando viram, ficaram mais loucos ainda, partiram pra cima dele sem dó, que atingiu um deles sem muita força. depois corremos juntos em direção aos arcos, mas antes mesmo de chegar na altura do prédio em obra, atiraram o pau e pedradas. resistimos e continuamos a correr na joaquim silva, quando um cara na esquina, aparentemente aleatório, tomou a nossa frente e chutou nossas pernas pra gente cair.

tudo era difícil: correr, fugir, sobreviver, proteger, reagir, pedir ajuda. tudo era uma luta.

só senti falta na hora de gente pra ajudar a conter aquele massacre.

eu desci por aquela rua do depósito que dá na pizzaria guanabara com gente ainda me seguindo, então cruzei a rua em direção aos arcos da lapa e encontrei o Kleper já voltando da guarda municipal. quando ele me contou do descaso, avistei um carro da GM na riachuelo e, no meio do trânsito, corri pra cima pedindo urgência. voltamos pra joaquim silva, subindo pelos arcos, achando que a guarda vinha logo atrás. que nada! bem no meio da rua estavam eles em estado de alerta.

um amigo conseguiu fugir sozinho; outro, soube depois, teve ajuda de uma senhora que é do local e foi com ele até perto da sala cecília meireles, oferecendo socorro e dinheiro pro táxi. logo depois avistamos os dois amigos já juntos perto de onde tem aquela placa de reurbanização da lapa. demos um jeito de sair rápido desse local e fomos tentar ajuda na guarita da PM ali do lado... não tinha ninguém, éramos nós por nós mesmos, como é na real.

nos abraçamos e cuidamos uns dos outros. dois amigos ficaram tão mal do espancamento que não puderam vir comigo e com o Kleper pra delegacia, onde, aliás, foi outra luta.

três horas de espera pra fazer um registro envolvidos em todo um tratamento, diálogo e representação que dão conta da falência do estado e suas instituições públicas medievais, de segurança, e não só, engessadas e incapazes de compreensão, acolhimento e defesa. apesar disso, insistimos.

insistimos por saber que são esses registros institucionais, esses indíces, que são levados em conta na hora de se fazer as leis. por saber que o silêncio, ainda que caro, é conivência, é derrota e espaço pra reprodução do terror e do medo. e não é por outra razão que manifesto esse relato. e no entanto, somos menores do que o fato ocorrido.

por isso eu quero que meus amigos saibam, quero que minha família saiba, quero que meus parentes e colegas de trabalho saibam, quero que todo mundo que me conheça, saiba: eu, José Maxsuel, fui vítima de homofobia. que os fatos sejam sabidos: pelo governo, pelo direito, pelas artes, pela mídia. quero que saibam, do comerciante ao frequentador.

quero, porque é algo que perpassa todas essas sociabilidades, e que precisa ser atravessado de todas as maneiras. é preciso que se pense, que se discuta, que se afete, que se questione, que se sinta, é preciso saber que uma ideia é uma arma, e que mata!

é preciso também que a gente se afirme sem se fechar — que não sectarize, emancipe — todos: negros, mulheres, gays! todas as lutas, identidades e devires do eu-além-do-sujeito, porque é uma luta pra SER, todo dia! e só SER é sempre muita coisa.

portanto, que saiamos desse lugar fácil de vitimização, paranoia e medo, e afirmemos a potência dos últimos encontros e das coisas que tão rolando, é a nossa resistência! é o movimento que gera essa crise que pode gerar mais movimento.

eu levei esses três dias me recuperando, indo da ira e do desejo de destruição, de matéria e símbolos, ao estado de tranquilidade e paz interior, alimentando meu corpo, ouvindo as pessoas, me fortalecendo, mas o todo tempo pensando no que a gente pode fazer com isso. fazer do ato de ódio uma infantaria amorosa na joaquim silva!

acho que é hora de acionar as redes e levar um pouco de amor praquele lugar hostil. é isso, ou vamos continuar dizendo à mulher estuprada que a culpa na real foi dela? é isso, ou o medo daqui em diante de mostrar nossa afetividade na rua?

não me interessa a segurança da minha casa, o vidro fechado, o carro blindado, condomínio isolado, a paz do gueto. eu quero reclamar esse espaço que é a rua, porque, se não velho, nada disso faz sentido. eu não acredito, ou não quero acreditar, que é assim mesmo, que tome cuidado e que fica por isso. no último sábado, na lapa, eu não apanhei sozinho!

apanhamos todos!

há sinais de uma mudança política no espaço, fruto de uma política maior que o afeta; tudo sintomático numa conjuntura que nada deve desconsiderar, desde as coisas mais ou menos explícitas, como o que houve na sexta-feira da paixão com o bloco rec!clato (quando os meninos da escada censuraram a intervenção) — pode ser lido aqui: https://www.facebook.com/note.php?note_id=421741827839561  — até as mais sutis.

agora, em proposição e resposta, queremos ouvir as redes! queremos um encontro nosso naquele local já no próximo sábado, dia 28, com intervenção de arte e política (desculpar a redundância), choque de amor e espaço aberto pra performance, pra conversa, sei lá, pensar mil maneiras de ocupar o espaço, intervindo e dialogando com a rua.

e que nisso houvesse a presença de amigos, frequentadores, todas as redes e coletivos e afins, porque não há dúvida de que a gente precisa se fortalecer, tipo matilha, transversalmente.

TODOS fomos violentados!



Dentre os violentados estava um conhecido meu. Ao ouvir essa história hoje pela manhã durante o almoço, minha garganta deu um nó. Uma mistura de raiva e medo. Mas, não iremos desistir, jamais!

terça-feira, 17 de abril de 2012

Da necessidade de se criminalizar a homofobia*

Em primeiro lugar, cumpre destacar que o caput do art. 5º da Carta Magna celebra o chamado princípio da igualdade formal, segundo o qual todos os seres humanos são iguais em dignidade perante a lei, sem distinções. De tal mandamento, importa dizer que o Estado não deve apenas evitar as disposições discriminadoras, mas que também deve ter uma atuação positiva no sentido de coibi-las – e outra não poderia ser a conclusão, tendo em vista o teor de seu art. 3º, III –, se necessário até mesmo por meio da lei penal (RIOS, 2011). Apenas por meio desta atuação é que a sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos descrita em seu preâmbulo pode se efetivar.
Devido a tal, a política criminal brasileira tem-se marcado pelo progressivo combate ao preconceito, seja ele racial, religioso, ou de outra natureza, de forma que a criminalização da homofobia apenas segue esta tendência (BOTTINI, 2010). Tal entendimento levou o Ministro Marco Aurélio de Mello (2007) a eloquentemente questionar “Se a discriminação racial e a de gênero já são crimes, por que não a homofobia?”.
Deve-se destacar, entretanto, que o preconceito – ou antes, os preconceitos –, ainda que ad totum rechaçados na Carta Magna, são antes de uma categoria jurídica, um constructo histórico-social, de forma que certas discriminações são mais ou menos aceitas em nossa sociedade, o que acaba por refletir no tratamento legal de determinada questão.
Neste sentido, cumpre destacar que a própria Lei Maior, no seu art. 5º, XLII, determina expressamente a criminalização do racismo, não por ser este preconceito mais grave que outros ou a igualdade étnico-racial mais importante que, por exemplo, a igualdade de gênero. Tal previsão advém de um processo histórico específico que terminou pela incorporação formal das demandas dos movimentos negros na constituinte.
A Lei 7.716/89, a chamada Lei do Racismo, se num primeiro momento tão somente concretizava tal mandamento constitucional, acabou por se tornar a base jurídica da criminalização de qualquer forma de discriminação, por meio da inserção em seu primeiro artigo da em função de procedência nacional e por religião.
Tal situação levou o criminalista Guilherme de Souza Nucci (apud VECCHIATTI, [s.d.]) a afirmar que o termo racismo contemplaria toda ideologia que prega a superioridade ou a inferioridade de um grupo em relação a outro, ao comentar o conceito jurídico-constitucional de “raça” com base na decisão do STF no caso Ellwanger (HC 82.424/RS)[1].
De tal entendimento resulta que a inserção da homofobia na Lei do Racismo, longe de ser incoerente, visa apenas à sistematização do Direito Penal por meio de um único diploma que disponha sobre a criminalização das discriminações. Assim a lei estará punindo não apenas homofobia, mas também o sexismo, a discriminação religiosa, a xenofobia, etc. com as mesmas penas previstas para os casos de segregação racial (BOTTINI, 2010).
Esta igualdade entre as penas busca a concretização do princípio da proporcionalidade, uma vez que a punição cominada a determinado delito deve situar-se em patamar similar àquela imposta a outro delito que externe semelhante danosidade social (FELDENS, 2007). Com isto, procura-se demonstrar que o Estado brasileiro além de não tolerar nenhum tipo de discriminação não faz distinção entre estas.
O montante de pena dos crimes de discriminação (tanto daqueles constantes da Lei do Racismo, quanto o da chamada injúria discriminatória – Art 140, §3º do CP), por sua vez, recebe críticas de parte da doutrina por ser excessivamente rigoroso. Luiz Regis Prado (2010) especificamente conclui que a pena da injúria discriminatória é desproporcional frente ao bem jurídico que pretende tutelar – honra –, comparando-a a punição prevista para o homicídio culposo, que tutela a vida, bem jurídico axiologicamente mais elevado.
Tais críticas, entretanto, não permitem que a homofobia seja criminalizada com penas reduzidas em relação a outras formas de discriminação, tendo em vista que isto resultaria em dois problemas: de um lado, redundaria na declaração de que a homofobia é menos grave – isto é, mais aceitável – do que outras formas de preconceito; de outro lado, se aquela pena elevada foi a punição que o legislador considerou adequada para a tutela do bem jurídico igualdade racial, liberdade religiosa, etc., faz-se mister concluir que uma pena reduzida para os crimes de ódio devido ao preconceito sexual importaria, neste sistema, em lesão ao princípio da vedação da proteção deficiente, segundo o qual o legislador pode vulnerar determinado direito fundamental ao não protegê-lo de forma suficientemente efetiva (PULIDO, 2007).
Como já mencionado, do princípio da ultima ratio extrai-se que se outras formas de sanção jurídica ou de controle social protegerem suficiente determinado bem jurídico, a criminalização é inadequada e não recomendável (BITTENCOURT, 2009). Neste sentido, cumpre assinalar que o tratamento da questão não é homogêneo no Brasil, por ausência de uma lei nacional. No entanto, existem importantes leis visando combater a discriminação em alguns Estados e Municípios, como por exemplo, as constituições de Mato Grosso, Sergipe e Pará, que expressamente proíbem a discriminação em função de orientação sexual, além de haver legislação específica em cinco Estados (RJ, SC, MG, SP, RS) e o Distrito Federal.
            No âmbito do Estado do Rio de Janeiro, a Lei nº 3406/00 prevê penalidades para estabelecimentos comerciais e agentes públicos que discriminem indivíduos em função de sua orientação sexual. Para aqueles as punições podem variar de multa até a interdição do local, e para estes podem provocar até mesmo o afastamento definitivo do servidor.
            Todavia, uma lei nacional acerca do tema se impõe, uma vez que estados e municípios em nosso atual sistema federativo possuem pouca competência para lidar com questões deste gênero e sua iniciativas, embora de importância inolvidável, possuem baixa efetividade devido a sua aplicação geográfica reduzida e tratamento pontual do problema.
            Este tratamento legislativo em âmbito nacional é, ademais, premente. A violência de cunho homofóbico atinge níveis elevados no Brasil e, embora não existam estatísticas oficiais sobre o problema, os que se debruçam sobre o tema são unânimes em afirmar que o país é recordista em casos de violência contra homossexuais, travestis e transexuais (GGB,2011).
            De acordo com o Ministro Marco Aurélio de Mello (2007), o Brasil é campeão mundial em se tratando de homofobia, com mais de 100 homicídios cometidos anualmente. Segundo dados coletados pelo Grupo Gay da Bahia (2011), em 2010 foram cometidos 260 homicídios motivados por homofobia, sendo a região Nordeste a que apresenta mais casos. Já a UNAIDS – órgão da ONU para a questão da Aids – constata um assassinato homofóbico no Brasil a cada três dias.
            Os assassinatos de cunho homofóbico são, ainda assim, apenas uma das facetas do problema, pois os crimes de ódio não se resumem ao homicídio e o preconceito opera por maneiras muito mais sutis do que a violência física, oprimindo o individuo moral e psicologicamente na sua comunidade, no seu trabalho e até mesmo no seio de sua família.
            Diante deste cenário, não é demais invocar a tutela penal. Contudo, ressalva-se que esta não intenta promover a conscientização ou ensinar os valores da tolerância e do convívio, que devem ser buscados por outros meios; não lhe é própria uma função verdadeiramente pedagógica, visando apenas impedir a negação de direitos a determinados grupos sociais (BOTTINI, 2010).
Uma das críticas recorrentes feitas à criminalização da homofobia é a de que importaria na criação de “direitos especiais” ou “privilégios”, isto é, num estatuto jurídico mais protetivo à comunidade homossexual do que a outros grupos. Tal entendimento ignora o fato de que as legislações que buscam combater a discriminação das minorias – ainda que não expressamente previstas na Constituição – pretendem apenas buscar a igualdade material em situações concretamente desiguais, tendo em vista que na sociedade existem grupos privilegiados e oprimidos, que não podem ser ignorados. A promoção do principio geral da igualdade em sua esfera material pressupõe a análise das circunstâncias históricas da realidade dada (RIOS, 2006).
Outra dura crítica que estes projetos sofrem é a de que importariam em lesão ao direito de liberdade de expressão, principalmente no âmbito religioso. Estes críticos, não obstante, parecem se esquecer de que não há direito absoluto e que a proibição do discurso de ódio não inviabiliza a liberdade de opinião ou crença, pelo contrário, apenas a efetiva, na medida em que a prática das liberdades num mundo plural pressupõe seu exercício pacífico e tolerante (RIOS, 2011).
Ademais, a delimitação do direito de liberdade de expressão visa também evitar que os discursos discriminatórios – ainda que proferidos do púlpito – acabem por fomentar crimes ainda mais graves. Esta perigosa relação foi explicitada pelo ministro Ayres Britto (2011): “O homofóbico exacerba tanto o seu preconceito que o faz chafurdar no lamaçal do ódio. E o fato é que os crimes de ódio estão a meio palmo dos crimes de sangue”.
Os que tacham o PLC122/2006 de “mordaça gay” e a criminalização da homofobia de “ditadura gayzista” querem fazer parecer que existe um direito de discriminar ou condenar indivíduos unicamente em função de sua orientação sexual, assim como no passado outros discursos quiseram fazer crer que era legítimo e lícito diminuir pessoas em função de sua cor ou sexo. Todavia, tal discurso não encontra respaldo em nossa ordem jurídica e é francamente inconstitucional, sendo fundamental combatê-lo.           
          Por fim, cabe anotar que uma lei que criminalize a homofobia ou assegure direitos a minorias sexuais pode estar fadada a se tornar uma mera promessa se os aplicadores do direito forem eles mesmos preconceituosos. Destarte, cabe destacar que juízes, promotores, advogados, etc. muitas vezes se valem de clichês e pré-concepções sobre a homossexualidade. Tais discursos, não raro, reforçam a ideia de que as vítimas contribuíram para a perpetração da violência sofrida com sua “vida de risco” ou comportamento sexual “patológico”, “amoral”, definindo desde cedo o rumo da investigação e do processo, mesmo em casos de condenação (RAMOS; CARRARA, 2006).

* Extraído de: CARDINALI, Daniel; FREIRE, Lucas. "Orgulho e Preconceito: notas acerca do tratamento penal da homossexualidade e da homofobia". Contexto Jurídico. Rio de Janeiro: CALC/UERJ, vol. 2, n. 2, 2011, pp. 121-139.
[1] Este caso emblemático discutiu se a edição de livros anti-semitas por Siegfried Ellwanger estaria incluída no crime de racismo. A defesa sustentou que os judeus não seriam uma raça, não estando, portanto, configurada a conduta típica. Contudo, o STF entendeu que a divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social, não havendo diferenças biológicas entre estes.


Referências

BITENCOURT, C. R. Tratado de Direito Penal: parte geral I. 14ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009, 822 p.

BOTTINI, P. C. Discriminação é a negação do pluralismo. Folha de São Paulo. Tendências/Debates.  São Paulo; 04 de Dezembro de 2010.

BRITTO, C. A. Entrevista da 2ª. Folha de São Paulo. Cotidiano, São Paulo; 04 de Julho de 2011.

FELDENS, L. “A Conformação Constitucional do Direito Penal: realidades e perspectivas. In: SOUZA NETO, C. P.; SARMENTO, D. (coords.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007,  pp. 831-855.

GGB. Assassinato de Homossexuais no Brasil – 2010. 2011. Disponível em: <http://www.ggb.org.br/imagens/Tabela%20geral%20Assassintos%20de%20Homossexual%20Brasil%202010.pdf>. Acesso em: 07/07/2011.

MELLO, M. A. “A igualdade é colorida”. Folha de São Paulo. Tendências/Debates.  São Paulo; 19 de Agosto de 2007.

PRADO, L. R. Curso de Direito Penal brasileiro. Vol. 2, 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, 816 p.

PULIDO, C. B. “O princípio da proporcionalidade da legislação penal” In: SOUZA NETO, C. P.; SARMENTO, D. (coords.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 805-830.

RAMOS, S.; CARRARA, S. “A Constituição da Problemática da Violência contra Homossexuais: a articulação entre ativismo e academia na elaboração de políticas públicas”. PHYSIS: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro: n. 16, v. 2, 2006, pp. 185-205.

RIOS, R. R. Notas Sobre o Substitutivo ao Projeto de Lei 122. 2011. Disponível em: < http://www.clam.org.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?UserActiveTemplate=_BR&infoid=8405&sid=4>. Acesso em: 14/07/2011.

___________.  “Por um direito democrático da sexualidade”. Horizontes Antropológicos. Porto Alegre: ano 12, n. 26, 2006, pp. 71-100.

VECCHIATTI, P. R. I. Entenda o PLC122/06. [s.d.]. Disponível em: < http://www.plc122.com.br/entenda-plc122/#axzz1SOgFYIbh>. Acesso em: 11/06/2011.





sábado, 31 de março de 2012

Você é (a)normal?

João Silvério Trevisan começa um dos capítulos de sua magnífica obra com a seguinte frase: "A cada vez que alguém sente o apelo da diferença em seu desejo, provavelmente terá que vencer séculos de repressão, para chegar ao epicentro do seu eu". Em outras palavras, não é incomum que a percepção de uma sexualidade desviante seja acompanhada por um medo indescritível.

Isso é verdade, quantos gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais não sentem medo por expressar sua afetividade? Os longos anos de repressão absurda contribuem para isso. O discurso da homossexualidade como algo errado é tão forte que afeta até mesmo aqueles que se expressam sexualmente desta forma.

Assim, temos o fenômeno da homofobia internalizada. Não são raros os casos de jovens homossexuais que se suicidam por não suportarem a ideia de ser desviante. Não são raros os casos de pessoas que escondem sua homossexualidade ao extremo, forçando-se a levar uma vida "normal".

Nesse ponto nos perguntamos, o que é normal? Eu sou normal? Você é anormal? Em matéria de orientação sexual, todos somos normais. Nada diferencia um homossexual e de um heterossexual. Temos as mesmas capacidades físicas, intelectuais, emocionais, etc. Apesar dos esforços médicos de tentarem provar as causas genéticas da homossexualidade ( Ver postagem Por que homossexual?), nenhuma das pesquisas empreendidas conseguiram verificar nenhuma diferença, muito pelo contrário, a maioria delas somente demonstrou a igualdade entre heteros e homossexuais.
Normal e anormal são conceitos, são criações. O que é normal para você, pode não ser para outra pessoa. O que é normal no seu bairro, na sua cidade, no seu estado, pode ser incrivelmente perturbador para outros que moram em outros locais.

Então não, homossexuais não são anormais, da mesma forma que heterossexuais não são normais. Por mais que a homofobia externa seja ainda um grande perigo no Brasil, a homofobia internalizada também o é. Quando você naturaliza a ordem heteronormativa, não é preciso que outra pessoa te bata, te xingue ou te discrimine para que você se sinta menor; nesses casos, você mesmo funciona como seu opressor, agredindo a si mesmo, condenando-se a infelicidade.

Por fim, não se sinta anormal. Liberte-se dos preconceitos e busque aquilo que lhe interessa. Não se deixe engessar. Não é fácil enfrentar o mundo dos "normais", mas viver infeliz é igualmente difícil.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

As vítimas da homofobia

É inegável que no Brasil os homossexuais têm conquistado direitos basilares para a efetivação de sua cidadania. No entanto, quanto mais visibilidade, maiores são reações daqueles que discordam de tais conquistas.

Neste sentido, as manifestações homofóbica têm se tornado cada vez mais frequentes no Brasil. Elencarei somente alguns casos, pois a busca por todos tomaria um enorme tempo e espaço no blog: militante do movimento LGBT é agredido na Rua Augusta em SPJovens são agredidos com lâmpadas na Avenida PaulistaCasal gay é agredido na Avenida PaulistaParaíba tem 12 assassinatos por homofobia em 2011.


As relações de gênero


Existe em nossa sociedade uma divisão de papéis sexuais bem demarcada. Em outras palavras, existem diferentes comportamentos associados aos homens e as mulheres. Essa divisão é baseada na suposta diferenciação entre os sexos biológicos e, portanto, pertencem a “ordem natural” das coisas.

Contudo, de natural essa diferença não tem nada, afinal, não nascemos masculino nem feminino, e sim aprendemos a sê-lo em sociedade. Esse aprendizado começa na infância (por exemplo: meninos vestem azul e meninas rosa; meninos brincam de carrinho e meninas de boneca) e conforme os indivíduos se desenvolvem, essas ideias internalizam-se, tornam-se “naturais”.

A diferença dos gêneros (masculino e feminino) orienta toda ordem sexual verificada na sociedade, na qual os homens trabalham e as mulheres cuidam da casa. Todos com papéis bem definidos. Superficialmente, as relações de gênero podem ser descritas desta forma. Não aprofundarei essa discussão nessa postagem.


As relações de gênero e a homofobia


Assim, a pergunta que se põe é: “o que as relações de gênero têm a ver com a homofobia?” A resposta é mais simples do que parece, TUDO.

A homofobia não é limitada aos homossexuais, de forma alguma. Ela afeta a todos aqueles que violam as barreiras dos papéis de gênero. Como tais casos mostram: Arquiteto é agredido na Avenida PaulistaPai e filho são agredidos após serem confundidos com homossexuais.

Desta forma, as percepções de diferenças entre homens e mulheres são tão arraigadas que elas se articulam a sexualidade de uma maneira automática. Temos concepções “precisas” do que são características masculinas e feminas. Dito de outra forma, é (quase) impossível pensar em um homem cabelereiro heterossexual ou uma mulher mecânica heterossexual, levando em que estas profissões são percebidas como feminina e masculina, respectivamente, a partir do momento em que seus ocupantes não correspondem a expectativa da sociedade, são imediatamente classificados como homossexuais, mesmo que não o sejam.

Com isto, fica evidente o machismo presente por trás das manifestações de violência homofóbica. Fica claro também o quão preconceituosas são essas atitudes ao supor valores e comportamentos a partir de alguns signos.

Até quando teremos que conviver com isso? Até quando deixaremos de evoluir como seres humanos e ficaremos presos a estereótipos esgotados? Até quando o sangue de pessoas que buscam viver de forma digna será derramado?

Precisamos rever nossos conceitos e eliminar os preconceitos, só assim poderemos viver em igualdade.





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BORRILLO, Daniel. Homofobia – história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, 142 p.

RIOS, Roger Raupp; PIOVESAN, Flávia. “A discriminação por gênero e por orientação sexual”. Cadernos do CEJ. Brasília: vol. 24, 2011, pp. 154-175.

SEFFNER, Fernando. “Identidade de Gênero, Orientação Sexual e Vulnerabilidade Social: pensando algumas situações brasileiras”. In: VENTURI, Gustavo; BOKANY, Vilma. (orgs.) Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil. São Paulo: Perseu Abramo/Instituto Rosa Luxemburg Stiftung, 2011, pp. 39-50.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Por que homossexual?

Muitas pessoas buscam uma razão que explique a origem da homossexualidade. Sejam pais, psicólogos, religiosos, homossexuais, etc. parece que a questão é central para quando o assunto é homossexualidade.

Homossexualidade e ciências biológicas

A biologia (e a medicina aí incluída) buscaram durante muito tempo aspectos objetivos que apontassem para a homossexualidade de uma pessoa. Essa visão essencialista de que a homossexualidade é algo inerente ao indivíduo  já buscou explicações nos genes, nos hormônios, na anatomia dos órgão sexuais, entre muitas outras características presentes no corpo. No entanto, até os dias atuais, nenhuma dessas pesquisas chegou a um resultado cientificamente satisfatório; apresentaram somente indícios.
Não se pode negar que a naturalização da homossexualidade foi importante em um determinado momento para o movimento homossexual, pois foi o primeiro argumento que científico que funcionou para a defesa dos direitos civis dos homossexuais ao retirar o rótulo de pecado, “sem-vergonhice” que era atribuído às práticas homoeróticas.
Contudo, a visão essencialista apresenta um revés que pode tomar diversas formas:
1) um indivíduo que seja biologicamente identificado como homossexual, mas que não se considere como tal, será condenado a viver com tal rótulo;
2) uma vez que a homossexualidade faz parte do indivíduo e este não tem como se livrar dela, surge um sentimento de dó para aqueles que sofrem de tal “deformação”. Não é preciso dizer que esta atitude pode ser ofensiva, já que os homossexuais possuem as mesmas capacidades psicológicas, físicas, emocionais, etc. dos heterossexuais;
3) ao constatar a diferença biológica existente entre heteros e homossexuais justifica-se a segregação e a discriminação cientificamente, fato que representa um enorme perigo já que é possível observar historicamente as consequências de afirmações deste tipo;
4) por último, mas não menos importante, ao se encontrar A causa da homossexualidade, abrir-se-iam precedentes para a busca de uma cara para tal característica. Isso se comprova com os tratamentos de implantação de testículos e ovários parar curar gays e lésbicas, respectivamente.

Homossexualidade e sociedade

Uma alternativa a explicação através do corpo seria a explicação da homossexualidade através de aspectos sociais, psicológicos, culturais, subjetivos, etc. Entretanto, esse caminho também apresentam perigos significativos. São estes:
1) explicar a homossexualidade através de circunstâncias sociais faz com que muitos pais se culpem pela homossexualidade de seus filhos, principalmente quando esta é evidenciada na adolescência ou juventude;
2) Encontrar as condições sociais e psicológicas que produzem a homossexualidade também abre espaço para a busca de uma cura, que nesse caso se daria na forma “correta” que os pais deveriam criar seus filhos ou tratamentos com psicólogos (que no Brasil é expressamente proibido pelo Conselho Federal de Psicologia) sem resultados;
3) entender a homossexualidade como uma opção individual é prejudicial para o indivíduo homossexual, pois, ele se sente inferior aos demais, que conseguiram optar pela heterossexualidade. Isso leva ao indivíduo a buscar ajuda psicológica, que como dito anteriormente, raramente apresentam resultados, o que prejudica ainda mais o desenvolvimento psicológico dessa pessoa;
4) um desdobramento da visão da homossexualidade como uma escolha do sujeito é que esta é conduta é passível de punição. Como um criminoso, que sabe o que é “certo”, mas opta pelo “errado”, o homossexual tem consciência de sua escolha e portanto, é obrigado a “arcar com as consequências” da vida que resolveu levar. Essa concepção é comumente encontrada no imaginário social como justificativa para ações homofóbicas e discriminatórias.

Por que “por que homossexual?”?

De acordo com o exposto acima, parece que nenhum dos dois caminhos é aconselhável para se explicar a homossexualidade. A partir de então, parece que o “erro” se encontra na pergunta e não na resposta.
Qual o motivo de se questionar o causa a homossexualidade? Ratificar as diferenças entre homos e heterossexuais? Identificar as condições (sejam elas biológicas ou sociais) que causam tal distúrbio para que sejam eliminadas e com isso impedir a reprodução da homossexualidade?
O problema não está na homossexualidade, mas naqueles que insistem em que os seres humanos são diferentes entre si. Enquanto esse pensamento permanecer, jamais viveremos em condições de igualdade.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BORRILLO, Daniel. Homofobia – história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, 142 p.

CASTAÑEDA, Marina. A Experiência Homossexual: explicações e conselhos para os homossexuais, suas famílias e seus terapeutas. São Paulo: A Girafa, 2007, 328 p.

FRY, Peter; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade. (Coleção Primeiros Passos, n. 26). São Paulo: Abril Cultural/Brasilense, 1985, 128 p.


sábado, 17 de dezembro de 2011

Afinal, o que é homofobia?

Nas minhas recentes conversas com amigos próximos e colegas não tão próximos assim pude perceber uma coisa interessante. Existe uma forte ligação entre o termo “homofobia” e a violência física. Para ilustrar, uma vez perguntei a uma pessoa “você conhece alguém que tenha sido vítima de homofobia?” e a pessoa me respondeu “não. Só alguns xingamentos e olhares tortos”.


Com isso, pode-se notar que o assédio moral (ou violência simbólica) não é considerado tão grave. Isso pode ser devido à violência física ser a face mais visível e perversa da homofobia, uma vez que ela pode causar graves lesões e até mesmo matar um indivíduo.


No entanto, isso pode ser analisado a partir da naturalidade com que a discriminação é encarada pela sociedade – e isso inclui os homossexuais. Na hierarquia das sexualidades, a homossexualidade se encontra abaixo de todas. Isso se dá por uma série de razões históricas, culturais, sociais, psicológicas, teológicas, etc. que não serão discutidas nessa postagem.


Mas, para que dizer tudo isso?


O objetivo aqui é estimular a reflexão sobre como a discriminação age.
Assim, homofobia não é só um soco ou chute dado unicamente em razão da homossexualidade de um sujeito. Ela está presente nos olhares que reprovam, nas piadas e brincadeiras, nos xingamentos que ofendem, no tratamento desigual e em muitos outros acontecimentos cotidianos.


Apesar da violência física ser capaz de quebrar um braço, a violência simbólica é capaz de condenar um indivíduo a uma vida infeliz. E assim sendo, as duas são potencialmente perigosas.
Não se pode mais ignorar a desigualdade, só assim conseguiremos a efetivação da cidadania para os homossexuais!



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BORRILLO, Daniel. Homofobia - história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.